Casos práticos de uma Delegacia de Polícia: embriaguez ao volante

Eu costumo dizer que a justiça começa na delegacia de polícia e com o objetivo de demonstrar esse meu ponto de vista, resolvi reproduzir na coluna de hoje uma decisão que tomei durante essa madrugada ao analisar uma possível violação ao artigo 306, do Código de Trânsito Brasileiro.  Notem que casos como esse revelam que a atividade de polícia judiciária e a própria função do delegado de polícia não estão vinculadas apenas ao poder punitivo do Estado, mas, sobretudo, à garantia dos direitos fundamentais e à promoção de justiça. Confiram a decisão!

Trata-se, em suma, de uma situação em que FULANO DE TAL foi apresentado “capturado” neste plantão de Polícia Judiciária, haja vista ter sido surpreendido por policiais militares, durante uma abordagem de rotina, na condução de veículo automotor em aparente estado de embriaguez. Efetivada audiência primária de apresentação e garantias por este Delegado de Polícia, após tomar ciência de todos os seus direitos constitucionais, especialmente o de não produzir provas contra si mesmo, o conduzido recusou-se em submeter-se ao exame de etilômetro. Não obstante, ele concordou em participar do exame clínico e forneceu material para o exame de sangue. Consigne-se que o resultado do laudo clínico confirmou a embriaguez, sendo que o laudo do exame de sangue só será disponibilizado dentro de alguns dias.

Diante disso, o Delegado de Polícia subscritor, no uso de suas atribuições constitucionais e legais, sob as premissas da Lei nº 12.830/13  , delibera nos seguintes termos:

Nesta etapa inicial de cognição sumaríssima, típico da prisão em flagrante, exige-se um juízo superficial sobre a materialidade delitiva, dispensando-se, assim, o juízo de certeza, que só poderá ser obtido ao final da investigação criminal. O caso em questão envolve o crime de embriaguez ao volante, descrito no artigo  306, do CTB  onde a materialidade pode ser demonstrada por diversos meios de prova, sendo que, entre eles, destacam-se as provas técnicas (exame do etilômetro e exame de sangue).

Independentemente da situação, em se tratando de infração que deixa vestígios, nos termos do artigo 158 do CPP, entendemos ser indispensável a realização do exame clínico pelo perito médico legal, uma vez que este meio de prova complementa os demais, sobretudo na constatação da elementar prevista no tipo penal em apuração, qual seja, a “alteração da capacidade psicomotora” do motorista. Destarte, parece-nos que tanto o exame do etilômetro quanto o exame de sangue precisam ser corroborados pela análise clínica do perito, pois só assim teremos uma prova além de qualquer dúvida razoável acerca do delito de embriaguez.

Nesse contexto, o Delegado de Polícia subscritor entende que nos casos em que o suspeito fornece material sanguíneo para o exame pericial, é necessário aguardar o resultado do laudo, que pode, inclusive, servir como contraprova para o investigado (art. 306, 2º, do CTB) . Por óbvio, a prisão em flagrante pode ser decretada com base apenas na prova testemunhal. Contudo, esse cenário não é o mais adequado, sobretudo porque a medida em questão impõe a restrição de um direito fundamental. Assim, esta Autoridade de Polícia Judiciária tem a convicção de que nas situações em que o conduzido se dispõe a fornecer material sanguíneo, a sua prisão em flagrante não deve ser decretada, inclusive porque ele está colaborando com a investigação e até produzindo provas contra si mesmo.

Mesmo que o exame clínico ateste a embriaguez, como no caso em análise, o exame de sangue pode ser utilizado como contraprova em benefício do investigado. Portanto, mesmo não sendo exigido um juízo de certeza nesta etapa sumaríssima, se há dúvida em relação aos indícios de autoria e materialidade, a prisão em flagrante não deve ser decretada.

Consignamos que o posicionamento adotado nessa decisão ganha força nos casos de delitos afiançáveis em sede policial. Isto, pois, o principal efeito pedagógico da prisão em flagrante, vale dizer, a restrição da liberdade, não será imposto com a lavratura do auto, ao menos não para as pessoas com condições financeiras para pagar o valor fixado na fiança. Percebe-se, assim, mais um exemplo de segregação do sistema penal, onde apenas os menos abastados sofrem com a face mais devastadora da prisão em flagrante, sendo recolhidos ao cárcere. Deveras, o ideal seria uma mudança legislativa que permitisse que a fiança fosse dispensada pelo próprio Delegado de Polícia em se tratando de preso pobre, o que vai ao encontro, aliás, das premissas estabelecidas pelo Pacto de São José da Costa Rica.

Com o objetivo de subsidiar nossa decisão, nos valemos de um exemplo prático. Imagine a situação de um suspeito com boas condições financeiras e que se recusa a assoprar o bafômetro e a doar material sanguíneo. Ele pode até ser preso com base nas provas testemunhais ou no exame clínico. Contudo, após a lavratura do auto de prisão em flagrante, ele será beneficiado com a liberdade provisória mediante fiança. Por outro lado, um sujeito pobre que se recusa a fazer o bafômetro, mas fornece material sanguíneo para o exame, ficará preso em flagrante, haja vista que não terá condições de pagar a fiança, ainda que esta seja fixada no mínimo legal. Percebe-se, pois, que o aspecto econômico será essencial na definição sobre a restrição ou não de um direito fundamental, o que, a meu ver, é inadmissível diante do princípio da dignidade da pessoa humana.

Pensamos que o Delegado de Polícia não deve pautar sua decisão na ânsia punitiva materializada no auto de prisão em flagrante. Dessa forma, mais vale a produção de um conjunto probatório robusto através da investigação, do que uma prisão em flagrante cujo aspecto pedagógico, na maioria dos casos, será neutralizado pela concessão de fiança.

Frente ao exposto, considerando que o conduzido colaborou com as investigações e forneceu material para o exame de sangue, considerando que tal exame pode ser utilizado como contraprova em seu benefício, considerando, ainda, que o laudo clínico “positivo” para embriaguez pode divergir do laudo sanguíneo, com base no princípio do in dubio pro reo, consectário lógico do princípio da presunção de inocência, deixo de decretar a prisão em flagrante do conduzido, determinando, todavia, a formalização dos demais procedimentos de polícia judiciária para que os fatos sejam melhor apurados posteriormente.

Destaque-se, por fim, que foi lavrado auto de infração e multa pelo policial militar em prejuízo do suspeito. Como o veículo utilizado por ele não apresenta qualquer irregularidade, autorizo sua entrega a uma pessoa habilitada e que não se encontra embriagada. Expeça-se as requisições e ofícios de praxe. Promova-se a oitiva de todos os envolvidos.

Redação: Fonte: Jornal Tribuna

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