A vida social foi suprimida, assim como a vida escolar. As pessoas tinham medo de se beijar, as compras eram entregues na porta, as mercearias exibiam uma fita para que os clientes não entrassem e, a certa altura, se decidiu que as máscaras, mesmo as caseiras, podiam ser eficientes para impedir a disseminação do vírus.
Covas comuns eram cavadas e o número de óbitos em casa aumentou em progressão geométrica. Não havia lugares nos hospitais nem médicos e enfermeiras suficientes para atender a todos. O ano não é 2020, mas 1918, um momento trágico para a humanidade, quando a gripe espanhola atingiu praticamente todos os países e deixou mais de 50 milhões de mortos, segundo estimativas mais recentes. Aconteceu há mais de 100 anos, mas é surpreendentemente atual a maneira como o mundo lidou com a pandemia.
A história de como a doença afetou o mundo é tema de A grande gripe — A história da gripe espanhola, a pandemia mais mortal de todos os tempos, livro escrito em 2004 pelo historiador americano John M. Barry e que, agora, desembarca nas livrarias brasileiras com uma narrativa que parece ter sido construída para os dias de hoje.
Boa parte do livro fala de problemas que o mundo experimenta com a pandemia do novo coronavírus. As decisões políticas em detrimento da ciência, o distanciamento social como única arma contra o vírus, o colapso hospitalar, famílias inteiras atingidas pela doença, a busca por medicamentos milagrosos sem prova de eficácia se concatenam na construção de um cenário assustadoramente atual.
A gripe espanhola foi causada pelo vírus influenza e atingiu o planeta em várias ondas letais. À época, não se sabia qual era a causa e, durante muitos anos, pesquisadores atribuíram a uma bactéria a gripe que se transformava em pneumonia e matava em consequência de uma síndrome respiratória aguda.
Dezenas de tratamentos foram desenvolvidos, alguns mais e eficazes que outros, mas nenhum realmente definitivo. Em um momento em que cadáveres apareciam acumulados em calçada e as mortes se davam, às vezes, em menos de um dia após os sintomas, a urgência de encontrar vacinas e curas se espalhou. Alguns tratamentos tinham base científica, mas muitos, nasciam de desejos políticos e achismos.
Barry se concentra, principalmente, nos Estados Unidos, onde o vírus surgiu pela primeira vez, apesar do nome atribuído à gripe ter colocado a Espanha em evidência. A primeira parte do livro se debruça sobre a história da formação dos médicos americanos entre os séculos 19 e 20. As universidades de medicina tinham pouquíssimo prestígio e as aulas consistiam em eventuais palestras.
A teoria vinha à frente da prática e, muitas vezes, era baseada em conceitos atrasados e cientificamente questionáveis. Naquela época, a Europa estava décadas à frente na pesquisa e no ensino da medicina, o que foi fundamental para, mais tarde, avançar em relação a tratamentos, vacinas e a própria identificação do vírus influenza.
Aquelas primeiras décadas do século 20 eram também tempos de guerra e Barry demonstra como uma epidemia pode atrapalhar os planos políticos e ideológicos dos governantes, resultando em descontrole da própria disseminação do vírus. Quando o influenza devastou as tropas americanas — e foi por elas que a pandemia começou — Woodrow Wilson, então presidente, ficou bastante irritado com a interferência de um organismo invisível em seus planos bélicos e políticos.
Corria o final da Primeira Guerra e os Estados Unidos se preparava para ajudar os Aliados a derrotar a Alemanha. O que era para ser apenas uma gripe, se dependesse de Wilson, se transformou em uma doença letal que matava centenas de soldados por dia com uma pneumonia até então nunca vista.
Para Barry, a gripe espanhola deixou duas lições que deveriam ser aplicadas nos dias de hoje: falar a verdade e distanciamento social. “Alguns países aprenderam, outros não. Os presidentes dos EUA e do Brasil têm um grande problema em aceitar essas lições, enquanto outros, em outros países, tentaram aplicá-las”, constata o autor. Ele é enfático ao ressaltar a importância da transparência e da comunicação oficiais em situações epidêmicas.
Barry acredita que somente a verdade é capaz de proporcionar informação válida e inspirar confiança na população. Sem ela, qualquer medida tomada pelas autoridades para a contenção da disseminação pode se tornar inútil. “As consequências são óbvias”, acredita.
“Medidas de saúde pública são a prova do sucesso para conter o vírus e o Brasil se atrasou em implementá-las, principalmente por causa do presidente. E, como resultado, desenvolveu os piores recordes do mundo e pode acabar com o pior recorde mundial. Mais pessoas estão adoecendo e morrendo do que o necessário. Estupidez, teimosia, viés anti-ciência, chame do que quiser, seja lá qual for a razão, ela mata.”
Dependência
Assim como a prescrição de medicamentos com base em pesquisas inconclusivas também pode matar. A descoberta das drogas que ajudaram a humanidade a aumentar sua expectativa de vida é tema de Dez drogas — As plantas, os pós e os comprimidos que mudaram a história da medicina, do jornalista americano Thomas Hager, outro lançamento que chega em boa hora.
O ópio e seu uso indiscriminado a ponto de gerar uma epidemia de dependência, a importância das drogas antidepressivas e ansiolíticas para o conforto de pacientes antes confinados em hospícios, a revolução causada pelos antibióticos e a diminuição significativa de casos de infarto após a descoberta das estatinas são alguns dos alvos de Hager.
Com formação em microbiologia e imunologia, o autor sempre preferiu escrever sobre pesquisas do que realizá-las em laboratório. Hoje, quando olha para a pandemia do novo coronavírus e para a corrida por vacinas e medicamentos eficazes, ele lembra de capítulos de Dez drogas, como o da varíola, que matou mais de 300 milhões de pessoas apenas no século 20 e para a qual nunca se encontrou a cura, embora haja uma vacina.
O século 21, no entanto, traz uma novidade: “A covid-19 é um flagelo terrível, mas apareceu em uma era na qual temos uma forte estrutura de pesquisa já montada, bem equipada e com cientistas altamente treinados em universidades, laboratórios governamentais e empresas privadas de produção de drogas. Isso nos dá um arranque importante na busca de um tratamento efetivo”.
Infelizmente, o que é rápido para um cientista pode parecer lento para o público. Drogas levam, normalmente, anos para serem desenvolvidas e muito tempo para serem testadas antes de ficarem prontas para o mercado. Para Hager, seria surpreendente, mas não impossível, se cientistas encontrassem uma solução efetiva, uma vacina amplamente testada e pronta para o ano que vem. “Nossa resposta global para essa pandemia é algo muito novo.
Nunca a sociedade moderna, com nossas fontes e conhecimento sem precedentes, lutou uma batalha contra uma doença tão desafiadora. A maneira como respondemos vai fazer história”, acredita o autor, que é otimista em relação à descoberta de uma vacina para o coronavírus.
Você acha que estamos próximos realmente de encontrar uma terapia e uma vacina para a covid-19?