Posto do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) dedicado aos Xokleng no fim dos anos 1920.
Segundo a Funai (Fundação Nacional do Índio), há 245 processos de demarcação de terras ainda não concluídos. Em muitos desses casos, os indígenas reclamam territórios de onde dizem ter sido expulsos antes de 1988. Há ainda muitas demandas por demarcação que nem sequer foram analisadas pelo governo — o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), braço da Igreja Católica que atua em prol dos povos indígenas, conta 537 casos desse tipo. Em 11 de junho, o relator do processo sobre os Xokleng no STF, ministro Edson Fachin, votou contra a tese do "marco temporal". O julgamento foi suspenso após um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. É possível que novos pedidos de vista posterguem uma decisão.A retomada do caso se torna ainda mais relevante porque avança na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) 490, que, entre outros pontos, estabelece 1988 como marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Se a corte derrubar a tese no julgamento sobre os Xokleng, é provável que os congressistas tenham de mudar o texto do PL sob o risco de terem a proposta invalidada pela corte. Em 2018, num outro julgamento sobre a demarcação de territórios quilombolas, o STF rejeitou o princípio do "marco temporal".
Colonização europeia
Após perder dois terços de seus membros no século passado, a população Xokleng voltou a crescer. Hoje, a etnia soma cerca de 2,3 mil integrantes. O julgamento no STF em questão não é a primeira ocasião em que um fato relacionado a esse povo redefine as relações do Estado brasileiro com os povos indígenas. Em 1908, o etnógrafo tcheco Albert Vojtech Fric discursou em um congresso em Viena, na Áustria, sobre o impacto da imigração europeia nas populações indígenas do Sul do Brasil. Segundo Fric, a "colonização se processava sobre os cadáveres de centenas de índios, mortos sem compaixão pelos bugreiros, atendendo os interesses de companhias de colonização, de comerciantes de terras e do governo". Anos antes, Fric havia sido convidado por um grupo de políticos, humanistas e intelectuais de Santa Catarina para servir à Liga Patriótica para a Catequese dos Silvícolas.Enquanto poderosos locais defendiam exterminar os indígenas, esse grupo propunha uma abordagem mais "light": cristianizá-los e incorporá-los à força de trabalho nacional. Fric havia sido encarregado de liderar a "pacificação" dos Xokleng - termo usado na época para designar a aproximação com indígenas que mantinham relação conflituosa com a sociedade envolvente.
Comunidade Xokleng após o contato com os brancos (data desconhecida) A presença dos Xokleng era vista como um entrave à colonização da região. Eram comuns relatos de furtos ou ataques de indígenas a trabalhadores que avançavam sobre seu território tradicional. Mas Fric acabou deixando o Brasil antes de cumprir a missão. Em Os Índios Xokleng - Memória Visual, o antropólogo Silvio Coelho dos Santos (1938-2008) diz que Fric foi retirado do posto provavelmente por causa de pressões de companhias de colonização alemãs que atuavam em Santa Catarina e não concordavam com sua abordagem. O antropólogo afirma, porém, que o discurso de Fric em Viena teve grande repercussão na imprensa europeia e estimulou o governo brasileiro a agir para mostrar que se preocupava com os povos nativos. Em 1910, durante a presidência de Nilo Peçanha, foi criado o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), precursor da atual Funai. Inspirado por ideais positivistas, o órgão dizia ter como objetivo "civilizar" os indígenas e incorporá-los à sociedade brasileira — postura enterrada pela Constituição de 1988, que reconheceu aos indígenas o direito de manter seus costumes e modos de vida. Mesmo após a criação do SPI, as expedições de bugreiros contra povos como os Xokleng continuaram a acontecer por décadas. Em seu livro, Silvio Coelho dos Santos entrevista um bugreiro que diz ter participado de uma expedição para matar indígenas no governo Getúlio Vargas (1930-1945), ao menos 20 anos após a criação do órgão. As missões para aniquilar povos nativos aconteciam enquanto, na Europa, Adolf Hitler punha em marcha seu plano de exterminar os judeus. Ou enquanto artistas brasileiros passavam a valorizar a participação indígena na formação nacional, influenciados pela Semana de Arte Moderna de 1922.
Mulheres e crianças Xokleng capturadas por bugreiros e entregues a freiras em Blumenau; duas mulheres e duas crianças conseguiram fugir, voltando à floresta.
Crianças assassinadas
A proximidade temporal dos ataques aos Xokleng ainda provoca dor na comunidade. Em entrevista à BBC News Brasil por telefone, Brasílio Pripra, de 63 anos e uma das principais lideranças Xokleng, chora ao falar de um massacre ocorrido em 1904 contra seus antepassados. "As crianças foram jogadas para cima e espetadas com punhal. Naquele dia, 244 indígenas foram covardemente mortos pelo Estado", afirma. O episódio foi descrito no jornal já extinto "Novidades", de Blumenau, citado em artigo do jurista Flamariom Santos Schieffelbein na revista eletrônica argentina Persona, em 2009. "Os inimigos não pouparam vida nenhuma; depois de terem iniciado a sua obra com balas, a finalizaram com facas. Nem se comoveram com os gemidos e gritos das crianças que estavam agarradas ao corpo prostrado das mães. Foi tudo massacrado", relata o jornal. Pripra diz ter crescido ouvindo histórias como essa. "Eu choro, me emociono. Sou neto de pessoas que ajudaram a trazer a comunidade 'para fora', a fazer o contato (com não indígenas). É por isso que luto."
Redação: Fonte-BBC News Brasil