Há quem defenda com veemência que poucas coisas na medicina são tão intensas e gratificantes quanto salvar a vida de um paciente politraumatizado. Ao contrário do que ocorre com muitas doenças crônicas que prejudicam pessoas em idade avançada, vítimas de traumas severos tendem a ser jovens saudáveis que, de repente, acabaram feridos.
Os mais afetados têm entre 5 e 44 anos de idade. A Organização Mundial da Saúde (OMS) calcula que, todos os anos, 5,8 milhões de pessoas morrem em decorrência de traumas. Isso representa 10% de todos os óbitos do planeta Terra! São 32% mais mortos por trauma do que a soma das mortes por malária, AIDS e tuberculose, para se ter uma ideia do volume.
Muitas vezes a diferença entre vida e morte para esses pacientes está no cuidado que recebem. Assertividade do pré-hospitalar, aplicação do protocolo ABCDE, qualidade das avaliações primária e secundária podem ser determinantes para a vítima de trauma ou politrauma. Cada minuto e detalhe é decisivo. Por isso, uma das principais competências do médico que atende casos de urgência e emergência é a capacidade de tomar decisões rápidas.
Os neurocientistas entendem que a qualidade do processo de tomada decisão depende da capacidade do cérebro de antecipar cenários. Uma boa escolha é resultado da soma do equilíbrio emocional (mais calma, menos estresse) com conhecimento prévio. Entre as recomendações para uma boa tomada de decisão estão:
1- Entender as consequências das decisões;
2- Reunir o máximo de informações possível;
3- Restringir o número de opções.
Para facilitar esse processo quando uma vida está em jogo, existem protocolos e diretrizes que facilitam a tomada de decisão. São protocolos que reúnem informações cruciais para quem atende pacientes politraumatizados em plantões de emergência e pronto-socorro. Esse conhecimento permite reduzir riscos iminentes, estabilizar o paciente e gerenciar seu quadro até que todas as suas lesões sejam tratadas.
A importância da avaliação primária do paciente politraumatizado
A avaliação primária serve para avaliar e tratar rapidamente qualquer ferimento que coloca em risco iminente a vida do paciente. Por isso, exige muita agilidade. As principais causas de morte em um paciente traumatizado são obstrução das vias aéreas, insuficiência respiratória, choque por hemorragia e lesões cerebrais. Portanto, esses são aspectos que precisam ser examinados durante a avaliação primária.
Só vá ao plantão se souber o ABCDE do trauma
O ABCDE do trauma foi criado na década de 70 pelo cirurgião ortopédico James K. Styner, do Nebrasca (EUA). É um insight que surgiu de uma tragédia: Dr. Styner sofreu um acidente aéreo com a família. Sua esposa morreu imediatamente e ele quase perdeu os filhos também. As dificuldades que percebeu no atendimento à sua família o motivaram a criar o método, garantindo mais agilidade ao atendimento e segurança aos pacientes. Ou seja: aumentando a chance de sobrevivência dos politraumatizados.
Cada letra do ABCDE representa um termo em inglês:
A = airway / vias aéreas
B = breathing / respiração
C = circulation / circulação
D = disability / incapacidade
E = exposure / exposição
A: Vias aéreas e proteção da coluna cervical.
Avalie se as vias aéreas da vítima estão desobstruídas. Você pode fazer uma pergunta ao paciente. Se ele falar normalmente, significa que as vias aéreas estão abertas.
Também procure corpos estranhos, secreções, fraturas faciais ou lacerações das vias aéreas. Se houver um corpo estranho, ele deve ser removido. Se houver outras causas de obstrução, uma via aérea definitiva precisa ser estabelecida.
Durante essas avaliações e possíveis intervenções, deve-se tomar cuidado para garantir que a coluna cervical fique imobilizada e alinhada. A coluna cervical deve ser estabilizada mantendo manualmente o pescoço em uma posição neutra, em alinhamento com o corpo. Nesse procedimento, recomenda-se a estabilização da coluna vertebral por duas pessoas: uma deve cuidar da imobilização enquanto a outra gerencia as vias aéreas .A proteção das vias aéreas é necessária em muitos pacientes traumatizados. Pacientes com obstrução das vias aéreas exigem intervenção imediata.
B: Respiração e ventilação
Essa avaliação é realizada primeiro por inspeção. O médico deve verificar desvio traqueal, pneumotórax aberto ou feridas no peito, movimento do tórax ou movimento paradoxal do tórax ou excursão assimétrica na parede torácica. Em seguida, precisa auscultar ambos os pulmões, para identificar sons pulmonares diminuídos ou assimétricos. Sons diminuídos e/ou diminuição do movimento da parede torácica podem ser um sinal de pneumotórax ou hemotórax. Esses, combinados com desvio traqueal ou comprometimento hemodinâmico, podem ser um sinal de pneumotórax por tensão – que deve ser tratado por descompressão com agulha seguida de colocação de tubo de toracostomia. As feridas abertas no peito devem ser cobertas imediatamente. Se o tórax estiver ferido e resultar em comprometimento respiratório, deve ser fornecida ventilação com pressão positiva. Um tórax amassado pode indicar uma contusão pulmonar subjacente.
Considere que, em geral, todos os pacientes traumatizados precisam receber oxigênio suplementar.
C: Circulação com controle de hemorragia
A circulação precisa estar adequada para que o cérebro e outros órgãos vitais recebam oxigênio. Perder sangue é a principal causa de choque em pacientes traumatizados.
Essa avaliação pode ser feita pelo nível de resposta, hemorragia óbvia, cor da pele e pulso (presença, qualidade e frequência).
Qualquer hemorragia óbvia deve ser controlada por pressão direta, se possível, e se for preciso, com torniquetes nas extremidades. Extremidades e rostos pálidos ou acinzentados podem indicar hipovolemia – que é a perda anormal do volume do sangue. Pulsação rápido e fraca nas carótidas e artérias femorais também podem indicar hipovolemia.
No trauma, a hipovolemia é tratada primeiro com soluções isotônicas de 1 a 2 litros, mas depois precisa de produtos sanguíneos. O tempo de preenchimento capilar pode ser usado para avaliar se a perfusão tecidual é adequada. Se demorar mais de de 2 segundos, pode indicar má perfusão, a menos que uma extremidade esteja fria. Lembre-se: qualquer paciente que apresenta extremidades frias e pálidas está em choque até que se prove o contrário.
Sem sinais óbvios de hemorragia, e quando há comprometimento hemodinâmico, um tamponamento pericárdico deve ser considerado e, se houver suspeita, corrigido com pericardiocentese.
D: Incapacidade (avaliação do estado neurológico)
A avaliação rápida do status neurológico do paciente é fundamental quando ele chega à emergência. É preciso verificar o nível de consciência e sinais neurológicos. A avaliação pode ser feita pela escala de coma de Glasgow (GCS), tamanho e reação da pupila e sinais de lateralização.
Se a GCS for baixa, pode ser que o paciente tenha reflexos reduzidos nas vias aéreas; nessas circunstâncias, ele precisa de uma via aérea definitiva.
E: Exposição e controle do ambiente
O paciente deve ser completamente despido e exposto, para garantir que nenhuma lesão seja perdida. Também é preciso cobrir a vítima com cobertores quentes para limitar o risco de hipotermia.
Se uma lesão ou problema com risco de vida for identificado em qualquer nível do ABCDE, ele será tratado antes de prosseguir. Partes ou toda a avaliação primária do ABCDE podem ser repetidas com frequência durante o tratamento do paciente traumatizado.
Vai atender na emergência? Esteja preparado para o politrauma
O atendimento de vítimas de politrauma oferece aos médicos a chance de reverter uma tragédia. Trabalhando em conjunto, com conhecimento e capacidade de tomar decisões rápidas, as equipes de profissionais de saúde podem ter a satisfação de ajudar os pacientes gravemente feridos a voltar para suas vidas.
Se você é médico ou residente em plantão na emergência, assegure-se de que está preparado para lidar com esse tipo de paciente. As estatísticas são alarmantes e certamente você vai precisar atender vítimas politraumatizadas em algum plantão.
Para ajudar médicos já formados e graduandos de medicina a lidar com o politrauma, o centro de treinamento médico Exponential Medical Education (EME Doctors) criou o curso Traumatic. Ele foi pensado de maneira a se adequar na rotina desses profissionais, por isso, é intensivo: durante 10 horas em um único dia os alunos aprendem a tomar decisões rápidas no atendimento de vítimas politraumatizadas.
Ele engloba os conceitos mais atuais de prioridades na atenção ABCDE, avaliação primária e secundária. Para isso, usa simulação de casos reais e tecnologia realística, permitindo discussão detalhada dos pontos críticos e necessários para o adequado atendimento do paciente.
Aborda também as interpretações de exames radiológicos, queimaduras, imobilizações e suturas de ferimentos, sendo cada um deles direcionado dentro de sua estação e com atividades práticas. Todo o curso segue um manual do aluno, desenvolvido com o que há de mais recente na literatura médica, com artigos científicos e fluxogramas de atendimentos.
Durante as estações, cada aluno atua como líder do time, com experiências práticas, técnicas em procedimentos básicos, apresentação interativa, debriefing de cada situação desenvolvida em grupo e mediadas pelo instrutor. Ao final de cada estação, uma avaliação é aplicada. Concluído o curso, os aprovados recebem um certificado, emitido pela EME Doctors, atestando sua aptidão para atender o paciente politraumatizado.
Propósito de vida: difundir conhecimento sobre Medicina de Emergência
O curso Traumatic é coordenado pelo especialista em Medicina de Emergência Dr. Gustavo Deboni (CRM/SC 12.713), médico há 20 anos, cirurgião-geral e titulado pela Associação Brasileira de Medicina de Emergência (Abramede). Há 10 anos, Dr. Deboni atende em plantões semanais na sala de emergência do segundo maior hospital de Santa Catarina, onde opera os casos mais complexos. Também coordena e leciona na pós-graduação em medicina de emergência e agrega ao currículo uma longa experiência como médico do SAMU.
Dr. Deboni idealizou a plataforma de ensino Primeiro Plantão e fundou a EME Doctors com o objetivo de democratizar o acesso ao conhecimento especializado sobre Medicina de Emergência. “Durante tantos anos de atendimento a emergências, percebi nos residentes e médicos recém-formados uma grande dificuldade em dar seus primeiros plantões. São fatores como limitações técnicas, ansiedade, falta de habilidade prática, comunicação inadequada com a equipe multidisciplinar e familiares que prejudicam sua performance”, analisa.
Identificou na democratização da Medicina de Emergência um propósito de vida e, hoje, aplica sua experiência para ajudar novos médicos a darem seus primeiros plantões mais tranquilos e confiantes. No horizonte, vislumbra contribuir com a qualificação da formação médica, de maneira a melhorar a qualidade de vida do profissional da saúde e a segurança dos pacientes em situação de emergência.
Acesse o link para saber mais sobre o curso Traumatic, voltado a médicos e residentes que desejam aperfeiçoar sua aptidão nas mais atuais práticas de atendimento ao paciente politraumatizado: https://emedoctors.rds.land/traumatic.
Redação: Fonte--EME